sexta-feira, 29 de junho de 2012

Declaração de Amor 
 

"Esta é uma confissão de amor: amo a língua portuguesa. Ela não é fácil. Não é maleável. E, como não foi profundamente trabalhada pelo pensamento, a sua tendência é a de não ter sutilezas e de reagir às vezes com um verdadeiro pontapé contra os que temerariamente ousam transformá-la numa linguagem de sentimento e de alerteza. E de amor. A língua portuguesa é um verdadeiro desafio para quem escreve. Sobretudo para quem escreve tirando das coisas e das pessoas a primeira capa de superficialismo.

Às vezes ela reage diante de um pensamento mais complicado. 

Às vezes se assusta com o imprevisível de uma frase. Eu gosto de manejá-la – como gostava de estar montada num cavalo e guiá-lo pelas rédeas, às vezes lentamente, às vezes a galope.

Eu queria que a língua portuguesa chegasse ao máximo nas minhas mãos. E este desejo todos os que escrevem têm. Um Camões e outros iguais não bastaram para nos dar para sempre uma herança da língua já feita. Todos nós que escrevemos estamos fazendo do túmulo do pensamento alguma coisa que lhe dê vida.

Essas dificuldades, nós as temos. Mas não falei do encantamento de lidar com uma língua que não foi aprofundada. O que recebi de herança não me chega.

Se eu fosse muda, e também não pudesse escrever, e me perguntassem a que língua eu queria pertencer, eu diria: inglês, que é preciso e belo. Mas como não nasci muda e pude escrever, tornou-se absolutamente claro para mim que eu queria mesmo era escrever em português. Eu até queria não ter aprendido outras línguas: só para que a minha abordagem do português fosse virgem e límpida".

quinta-feira, 28 de junho de 2012

Ultimatum 
(Álvaro de Campos, em 1917)
 
Mandato de despejo aos mandarins do mundo
 
 Fora tu,
 reles
 esnobe
 plebeu
 E fora tu, imperialista das sucatas
 Charlatão da sinceridade
 e tu, da juba socialista, e tu, qualquer outro
 Ultimatum a todos eles
 E a todos que sejam como eles
 Todos!
 
 Monte de tijolos com pretensões a casa
 Inútil luxo, megalomania triunfante
 E tu, Brasil, blague de Pedro Álvares Cabral
 Que nem te queria descobrir
   
 Ultimatum a vós que confundis o humano com o popular
 Que confundis tudo
 Vós, anarquistas deveras sinceros
 Socialistas a invocar a sua qualidade de trabalhadores
 Para quererem deixar de trabalhar
 Sim, todos vós que representais o mundo
 Homens altos
 Passai por baixo do meu desprezo
 Passai aristocratas de tanga de ouro
 Passai Frouxos
 Passai radicais do pouco
 Quem acredita neles?
 Mandem tudo isso para casa
 Descascar batatas simbólicas
 
 Fechem-me tudo isso a chave
 E deitem a chave fora
 Sufoco de ter só isso a minha volta
 Deixem-me respirar
 Abram todas as janelas
 Abram mais janelas
 Do que todas as janelas que há no mundo
 
 Nenhuma idéia grande
 Nenhuma corrente política
 Que soe a uma idéia grão
 E o mundo quer a inteligência nova
 A sensibilidade nova
O mundo tem sede de que se crie
 Porque aí está apodrecer a vida
 Quando muito é estrume para o futuro
 O que aí está não pode durar
 Porque não é nada
 
 Eu da raça dos navegadores
 Afirmo que não pode durar
 Eu da raça dos descobridores
 Desprezo o que seja menos
 Que descobrir um novo mundo
 Proclamo isso bem alto
 Braços erguidos
 Fitando o Atlântico
 
 E saudando abstractamente o infinito.

Janelas Abertas Nº 2

Sim, eu poderia abrir as portas que dão pra dentro
Percorrer correndo, corredores em silêncio
Perder as paredes aparentes do edifício
Penetrar no labirinto
Um labirinto de labirintos dentro do apartamento
Sim, eu poderia procurar por dentro a casa
Cruzar uma por uma as sete portas, as sete moradas
Na sala receber o beijo frio em minha boca
Beijo de uma deusa morta
Deus morto, fêmea língua gelada, língua gelada como nada
Sim, eu poderia em cada quarto rever a mobília
Em cada um matar um membro da família
Até que a plenitude e a morte coincidissem um dia
O que aconteceria de qualquer jeito
Mas eu prefiro abrir as janelas
Pra que entrem todos os insetos